Luanda - Isto aqui começa a ficar complicado. Ou complicoso? Assim em catadupa, desde Paulo Jorge foi o corrupio nessa viagem sem regresso: Marques Kakumba, Mário Guerra, Mário Sambuaco... e agora o Frei João Domingos. A voz mais profética dos últimos tempos. O advogado dos pobres. Incómodo, mas amado. Severo e compassivo. Grande na visão ímpar da dimensão humana e pequeno para entender o pobre, o analfabeto. Simples no trato e complexo no pensamento com que esgrimia as razões da sua esperança... enfim, todas as contradições que caracterizam os verdadeiros e grandes profetas.


Fonte: SA


Nascido em Portugal em 1933, o Frei João Domingos Fernandes licenciou-se e tirou mestrado em Teologia, e entrou para uma das mais antigas e eruditas ordens monásticas da Igreja Católica: os Dominicanos que, pela eloquência e erudição com que pregavam o Evangelho, mereceram o epíteto de “Ordem dos Pregadores”. Foi nesta ordem, ao serviço da qual dedicou 50 anos da sua vida, que o Frei João Domingos afinou a formidável e simples argumentação pela qual ficou famoso pelo País inteiro.

 

Em 1982, a convite de D. Zacarias Kamwenho, então Bispo do Sumbe, vem para Angola e, em plena guerra, assume a Paróquia do Waku-Kungo. Ali, o jovem padre recém saído dos Estados Unidos  fez o tirocínio de amor que não mais deixou o seu coração: essa paixão pelas gentes simples a cujo serviço deleitava-se em pôr o seu formidável intelecto. Na intimidade do confessionário, e ouvindo a confissão dessas gentes, terá aprendido a ler-lhes o íntimo. A compreender os anseios mais profundos. A frustração por aquilo que faltava, e a esperança por aquilo que acreditava. Talvez mesmo a decepção pelos sonhos adiados...

 

vem-me agora à mente um episódio acontecido no longínquo ano de 1977 com o Cardeal do Nascimento. Na ressaca da então chamada “conspiração do Lubango” em que o regime de então “bravou feio” com os Bispos Católicos por estes terem-se demarcado do seu carácter marxista, o então Arcebispo do Lubango passava cada vez mais tempo no confessinário do Paço, ouvindo a gente simples em confissão. Quando chegasse as 11.30, hora da Missa, mandava dizer aos fiéis que depois voltaria, o que realmente fazia, apenas indo almoçar quando tivesse ouvido todos. Intrigado, perguntei-lhe uma vez porquê fazia aquilo, sem sequer pedir a qualquer outro padre para o ajudar. Respondeu-me então com a frase que agora me ocorre, ainda plena de significado: “O confessionário é o alimento dos Profetas...”

 

E daqui, deste Meu Canto hoje desolado vai ainda um outro àparte. Sobre estas coisas de homens ungidos que ouvem seus irmãos em confissão, é preciso um cuidado que sinto que não está a ser devidamente equacionado no tratamento que está a ser dado ao Padre Raúl Tati. Qualquer homem investido com o múnus de ouvir os outros em confissão tem que ser necessáriamente um profeta, sob pena de não ser fiel ao próprio ministério. E os profetas têm tendência a surgir quando o seu povo sofre por qualquer motivo. E a pior estratégia de lidar com os profetas é metê-los na cadeia. Transformam-se de profetas a mártires a atraem a maldição divina sobre os seus algozes. E sobre os seus filhos e, os filhos dos seus filhos. Corre pelo Kunene que todos, mas todos os autores da morte do Padre Leonardo Sikufinde começaram a morrer mal. Literalmente. Mortes feias. E o pior era que isso não acontecia apenas com eles, mas com os seus familiares próximos também. Então alguns parentes, com medo foram ter com o Bispo para que os livrasse da maldição que acreditavam ter pela participação dos seus parentes na morte do padre. “Como podem confessar-se por um pecado que não fizésteis?—conta-se que terá respondido o Bispo – E como posso absolver-vos por um pecado que não confessásteis?” Diz-se à boca pequena pelo Kunene que desse grupo não ficou ninguém.

 

 É que, essas coisas de prender e matar padres não dá sorte a ninguém...
Voltando ao Frei João Domingos; um intelecto daquele jaez não poderia passar despercebido aos Bispos da CEAST que, na sequência dos planos do lançamento do projecto ICRA (Instituto de Ciências Religiosas de Angola) chamaram-no para Luanda para impulsionar o projecto e puseram-no, a ele e alguns colegas dominicanos, na Paróquia do Carmo. Rápidamente o Carmo e Frei João Domingos passaram a ser uma e a mesma coisa. Ali começaram a ir à Missa do Domingo à tardinha “todos aqueles com fome e sede de justiça para sentirem-se aliviados”. O seu gesto fácil, o trato afável, a palavra branda – a voz e o argumento, esses reservava-os para o púlpito – logo ganharam os corações exigentes, materialistas e erráticos dos luandenses. O belíssimo coro – dos melhores da cidade, na minha opinião – organizado pelo seu colega Frei José só era então como a cereja sobre o bolo.

 

Mas foi quando, aos terceiros domingos de cada mês Frei João Domingos passou a celebrar a Missa Televisiva, que ganhou o coração de Angola inteira. Tirando partido do que tinha absorvido da Angola rural no Waku e Angola urbana no Carmo, sabia como ninguém falar com o Povo, para o Povo e em nome do Povo. Os seus posicionamentos proféticos valeram-lhe alguns dissabores, como aquela do Jornal de Angola sobre o “Padre Desbocado”. Mas, de uma maneira geral dirigentes e pobres viam nele a voz que – como o Baptista clamando no deserto? – pregava a visão de uma Angola nova, mais justa para todos, onde todos pudéssem sentir como “um bom lugar para viver”. Mais que a caridade, pregava a justiça social; mais que a educação, advogava a participação cidadã e plena. Era nessa missão que o homem simples e afável tronava-se irredutível à dimensão da verdade do seu Senhor.

 

Uma vez fi-lo rir a bandeiras despregadas com uma anedota que contei, ali no pátio do Seminário Maior depois da Missa. Como não quero manchar com lágrimas o passamento de tão grande homem, vou contar aos amigos leitores a anedota: foi assim:Estava uma única família negra num avião, quando este começou a ter problemas. O comandante diz então aos passageiros que algumas pessoas teriam que atirar-se do avião para salvar os outros; para ser justo, porém, chamaria as pessoas por ordem alfabética. “Africans (africanos)” – chamou o comandante. O chefe da família não se mexeu e o resto da família seguiu-lhe o exemplo. “Blacks (pretos)” – continuou o Comandante, e o homem, cara dele tipo nada. “Coloureds (mestiços)” diz o comandante já irritado, e o homem... nicles. Então o filhinho pequeno pergunta: “Papá, mas nós não somos Africans, Blacks e Coloureds?” “Não, meu filho – diz o homem – nós somos... Zulus!!!”


Sei que é assim que gostaria que me despedisse de si, Padre. Feliz retorno ao Pai. Quem sabe ainda o encontre lá..