Luanda - Entrevista do Acadêmico Nelson Pestana  concedida a António Pedro, jornalista do semanário económico "EXPANSÃO", a propósito do lançamento, pelo CEIC-UCAN, do "Relatório Social de Angola" que terá lugar dia 6 de Junho.


Fonte: EXPANSÃO

 
P1: Que razões de fundo levaram a elaboração do relatório social sobre o País?

R1: Olhe, o CEIC publica, anualmente, desde 2003, o “Relatório Económico de Angola”, onde produz uma análise sobre o comportamento dos principais agregados económicos, mas também, devido a dimensão do fenómeno no país, tem um capítulo sobre a pobreza que sendo um flagelo, moral e socialmente indigno e inaceitável, representa uma amputação ao poder de compra nacional, que impede a criação de uma massa alargada de consumidores, capaz de viabilizar e aumentar as iniciativas empresariais nacionais. Então, o CEIC decidiu, até mesmo pela vocação da UCAN, publicar também um Relatório Social que pretende dar uma imagem da situação social do país, servindo-se de indicadores estatísticos, dados sistémicos e da análise conjuntural, para dar a conhecer as condições reais de vida das populações e as suas próprias percepções sobre as linhas de coesão ou ruptura social, dos conflitos sociais e, ainda, a atitude e responsabilidade dos actores sociais actuais, perante as novas gerações. A perspectiva não é o consumo/rendimento per capita mas a questão social, como expressão da privação da qualidade de vida, num quadro analítico alargado a todas as dimensões fundamentais da vida humana; a liberdade política, a participação na vida da comunidade e na tomada de decisões, a segurança das pessoas, a sustentabilidade e a equidade entre gerações. Esta análise multi-dimensional da situação social do país, como expressão da privação de direitos de cidadania, pretende fazer jus ao objectivo fundamental da República de Angola que é a “construção de uma sociedade livre, justa, democrática, solidária, de paz, igualdade e progresso social” (artigo 1º, CRA).


 
P2: Na sua opinião, o crescimento económico dos últimos anos acompanhou de facto a redução da pobreza?

R2: Não! Bem, se quisermos ter uma visão estática do desenvolvimento social, poderemos concordar que baixamos, o índice de pobreza, em relação ao limiar estabelecido em 2001, embora se tenha agravado a pobreza extrema. Se tivermos uma visão dinâmica, e consideramos que o limiar de pobreza é relativo à própria riqueza que os países produzem e que a linha de pobreza é flutuante consoante o país se desenvolve e o nível de vida se agrava, devido não somente à inflação mas a inflação relativa, nomeadamente dos bens essenciais, então a situação não terá alterado muito, na medida em que continuamos com níveis de reprodução social muito baixos. Assim sendo, o país registou fortes índices de crescimento económico mas não resolveu a grave questão da pobreza. Pior ainda, houve um movimento contraditório no comportamento da pobreza. Por um lado, o crescimento económico, por efeito simpático e fruto de alguns investimentos em infra-estruturas e equipamentos sociais, produziu uma redução da faixa de pobreza mas por outro lado, o índice de desigualdade (índice de Gini) aponta para um agravamento da iniquidade na distribuição da riqueza, o que indicia que mais gente entrou na faixa da pobreza extrema. Ora, esta devia ser o primeiro e mais urgente alvo da acção dos vários actores de governação e da solidariedade nacional. E, neste capítulo é preciso dizer que registamos níveis superiores aos do período colonial.
 

 

P3: Neste sentido, como avalia a qualidade de vida dos angolanos?

R3: A qualidade de vida dos angolanos é das mais baixas porque a grande maioria vive num quadro de vulnerabilidade estrutural e de vulnerabilidade geral às doenças, para além de ter um fraco acesso a serviços básicos. Basta olhar Relatório de Desenvolvimento Humano para vermos que estamos em 146º lugar, num conjunto de 169 países. Temos um país imensamente rico mas é também profundamente desigual, social e regionalmente. Somos o segundo maior produtor de petróleo na África subsaariana (1,8 milhões de barris/dia – que permite à Sonangol lucros líquidos de 2,4 mil milhões de dólares), o quarto maior produtor de diamantes do mundo (1,3 milhões de quilates/ano), somos privilegiados em outros mineiros, em água, em terra arável, em recursos marinhos e muitos outros, no entanto, a grande maioria dos angolanos vive em péssimas condições: somente 8% tem acesso a uma torneira de água potável, fraco índice de acesso a serviços de saúde, o saneamento básico é baixo (em Luanda ronda os 51% e há províncias que dificilmente ultrapassam 1%), ainda não atingimos a educação universal, no ensino primário, onde a taxa líquida de frequência situa-se em 77%. Temos um fraco índice de frequência do secundário (18,9%), agravada por fracos índices de conclusão (entre 43% e 54%). Temos um ensino universitário debutante e uma quase inexistência de investigação científica e uma dissociação quase completa da educação e do tecido produtivo. Sem falar da qualidade do ensino, onde temos níveis negativos que fazem da educação uma grande mentira. Tudo isto coloca o país, para vergonha de todos nós, entre os países menos desenvolvidos do mundo. É preciso que haja um sobressalto nacional em relação a questão social se aspiramos a ser um país que conta, em matéria de política regional e internacional. Os países liderantes e outros com aspiração a liderança continuam a avançar, a ritmos muito mais acelerados que o nosso. Estivemos quase estagnados durante muito tempo, temos que reverter esta situação e procurar recuperar o tempo perdido, não com uma boa política de imagem mas com boas e efectivas políticas públicas.
 

P4: Acha que a Educação e a Saúde continuarão a médio prazo na condição de “parentes pobres” das despesas públicas de investimento?

R4: Espero bem que não! Angola e os angolanos precisam que a educação seja vista como a prioridade estratégica do desenvolimento nacional e a saúde como uma aquisição inalienável da humanidade de que todos devemos desfrutar, de forma universal, através da organização de um bom sistema de organização administrativa e de sustentabilidade financeira. Angola precisa de tomar medidas drásticas para reverter os fracos índices de desenvolvimento, nomeadamente em matéria de mortalidade infantil, expectativa de vida, taxa de aprovação, taxa liquida de freqência do ensino primário e secundário. Para a redução acelerada da mortalidade das crianças, com menos de 5 anos, tem que fazer a implementação, à escala nacional, de pacotes de intervenção que respondam ao padrão epidemiológico da mortalidade, às particularidades do sistema de saúde angolano e que sejam economicamente sustentável, a longo prazo. A autoridade pública não deveria ter a pretensão de trabalhar de forma isolada e devia estabelecer parcerias com as organizações da sociedade civil para potenciar as suas capacidades e obter resultados mais rápidos e duradoiros. Sendo consabido que 80% das doenças pediátricas são de origem hídrica e da falta de salubridade do meio, é fundamental investir no acesso à água potável e saneamento básico. A oferta universal de água potável pode evitar essas doenças infantis, trazer níveis de higiene individual e colectiva que associados a um reforço do aporte nutricional das crianças, através de produtos locais, vão reduzir drasticamente a mortalidade infantil e poupar dinheiro, em termos de saúde curativa. Os angolanos precisam de dispor de formação técnico-profissional para ocuparem os empregos que forem criados, para sairem dos níveis de dependência em que se encontram, permitir um certo aforro e resolver pela cidadania os seus problemas, sem recorrer ao “favor” do chefe. A educação e a saúde (ou, pelo menos, o acesso a estes dois bens) são também promotoras de igualdade e promoção social.


 
P5: Que comentário faz sobre as camadas sociais dos “20% mais pobres” e dos “20% menos pobres” expressas no relatório? 


R5: A situação no país permanece divergente e paradoxal porque os fortes indicadores de rendimento e crescimento económicos contrastam fortemente com as profundas disparidades na distribuição da riqueza e com os grandes défices no desenvolvimento social. Angola regista um IDH de 0,403, abaixo de países sem recursos, como o Haiti. Os indicadores básicos e de de saúde infantil são alarmantes, são piores do que a média dos países da África subsaariana. Em relação a mortalidade -5 anos, Angola regista 220 mortes, em mil[1], enquanto São Tomé e Príncipe, a Guiné-Bissau e o Haiti registam 98, 195 e 72 mortes, em mil nados-vivos[2], respectivamente. A taxa de mortalidade de -5 anos, baixou de 260 (1990) para 220 (2010), enquanto que nos demais PALOP’s, com muito menos recursos, como Cabo Verde passou de 60 (1990) para 29 (2010), Guiné-Bissau de 253 (1990) para 195 (2010) e Moçambique de 235 (1990) para 130 (2010). A esperança média de vida é também mais reduzida em Angola (48,1 anos) e por ai fora!


É esta realidade que faz com que o país seja muito desigual. A riqueza concentrada numa camada que não ultrapassa os 2,5% da população, contrasta com a realidade descrita. Fala-se, no IBEP 2010, em 20% mais ricos que viveriam com cerca de 1150 usd/ mês, enquanto os 20% mais pobres, que auferiram 3% do PIB, viveriam com cerca de 63,8 usd/mês. Este diapasão, apesar de ser enorme, não reflecte, no entanto a realidade. A realidade é bem mais grave do que esta. Não creio que haja cerca de 4 milhões de angolanos que disponham de um rendimento de 1.150 usd/mês. Por outro lado, se levarmos em conta, o movimento contraditório mencionado, o índice de pobreza extrema agravou-se, ultrapassando os 25%, do MICs 2001. Logo, é optimista falar-se em mais pobres com um rendimento superior a 2 usd/dia, quando este rendimento se situava em 0,80 cêntimos. Por outro lado, há evidências de situações de emergência, pois há camadas da população que estão submersas na fome; uma realidade que é admitida oficialmente mas sem que seja quantificada. O relatório social faz uma leitura crítica do IBEP 2010 e, por isto, utiliza esses referentes.  
 


P6: O País é o segundo maior produtor de petróleo na África subsaariana e o quarto maior produtor de diamantes do mundo. Mais investimentos nestas áreas ajudariam na melhoria de vida dos cidadãos. Concorda?


R6: Os grandes problemas de Angola são as infra-estruturas de base, o fraco nível da mão-de-obra e o débil funcionamento do Estado de Direito, enquanto que os angolanos carecem de empregos, possibilidades de empreendedorismo e de aquisição do perfil técnico-profissional para a empregabilidade. E, por isto, não participando nos processos de produção da riqueza, estão, na sua grande maioria, afastados da sua repartição. Como o Estado social que poderia funcionar como instrumento corretor das assimetrias sociais e regionais, é praticamente inexistente, as diferenças têm tendência a agravar-se, sobretudo porque a estrutura de oportunidades do país continua muito desigual. Daí a tendência da acumulação da riqueza, nos 20% mais ricos. E, mesmo no interior deste grupo se registam grandes disparidades, o que faz com que a riqueza esteja fortemente concentrada, num grupo muito restrito. Para além que essa camada não é portadora de cultura de empreendedorismo e de solidariedade nacional, preferem viver a sombra do Estado, agravando ainda mais as diferenças. Os investimentos no sector de petróleo não são produtores de emprego, em grande escala, porque utiliza alta tecnologia. Há outros sectores da economia para onde a política de investimento directo ou de incentivo ao investimento poderão criar emprego, até chegarmos a uma situação, quer de forte diversificação da economia, quer de pleno emprego. Não se pode esquecer a agricultura, não apenas para o “agro-negócio”, temos um tecido de agricultura familiar que ronda o milhão e meio de famílias e que é muito dinâmico e pode ser o esteio da segurança alimentar e da transformação positiva do meio rural. A indústria transformadora, não apenas no cimento e petroquímicos, mas também para outros minérios, como o ferro ou o cobre, a agro-indústria, tem que ser relançada. As indústrias ligadas às novas tecnologias têm que ser equacionadas em termos de estratégia de desenvolvimento. Estas orientações, associadas a uma política progressiva de bons salários e a investimentos em infra-estruturas e equipamentos sociais poderiam mudar o país.
 


P7: Diante destes factos, como caracteriza a situação política do País?

R7: É caracterizada pela concentração dos poderes de Estado no Presidente da República que dirige pessoalmente todos os níveis de poder. Ao Presidente da República cabem todas as competências como “Chefe de Estado” (artigo 119º, CRA), como “Titular do Poder Executivo” (artigo.120º, CRA), como “Comandante-em-Chefe (artigo 122º, CRA) e mais detalhadamente sobre matérias das “relações internacionais” (artigo 121º, CRA) e de “segurança nacional” (artigo 123º, CRA). É ele que “define a política geral do Estado” (artigo 120º, alínea a, CRA) e a administra em todo o território, através de órgãos consultivos (artigo 134º e seguintes, CRA), e estruturas governativas auxiliares centrais e locais que ele próprio escolhe e nomeia (artigo 119, alínea k, CRA). O Presidente da República, não sendo responsável politicamente pelos seus actos, nem perante a Assembleia Nacional, nem perante a Nação, que não o elege, goza também de poder legislativo próprio que exerce através de “decretos legislativos presidenciais provisórios” (artigo 126º, CRA) e poder legislativo delegado (“autorizado”), que exerce através de “decretos legislativos presidenciais” autorizados (artigo 125º, nº 2, CRA) pela Assembleia Nacional, em matérias de reserva relativa desta. No mais, conta ainda com a força de pressão de que dispõe, em relação a actividade legislativa da Assembleia Nacional, através da sua iniciativa legislativa (artigo 167º, nº 1) e, sobretudo, por força do mecanismo de veto (artigo 124º, nº 2) que lhe é concedido ao promulgar as leis. Esta opção pelo absolutismo presidencial, um regime de extrema concentração de poderes, numa pessoa, esta concepção antropomórfica do poder, é uma opção à contra-corrente do desenvolvimento político do país. É uma opção geradora de grandes resistências e de resilência política e social, no seu interior, que impede uma forte mobilização da população para um projecto nacional de desenvolvimento social partilhado. A concorrência política, de projectos e pessoas é fundamental para o país e, particularmente, para o controle da qualidade do político.
 


P8: A concretização de eleições autárquicas poderá vir a contribuir para a redução da miséria que ainda grassa no seio das famílias?


R8: Olhe, há vários processos de regionalização, municipalização dos assuntos públicos. Acontece com o ensino superior e com a “municipalização da saúde”, aliás, o programa de combate à pobreza do executivo também vai no sentido de tornar o municipio no seu epicentro, concentrando aí os meios e recursos e integrando as suas acções nos domínios da agricultura, da água, da saúde e da construção. Porque não deixar essa tarefa para os próprios municipios e não fazer deles meros executores das políticas do Estado central.


As autarquias teriam maior dinamismo e mobilizariam outras sinergias que o Estado não está capaz. O Estado poderia contratualizar com as colectividades territoriais, nesse sentido, fazendo apenas a fiscalização das políticas por via da avaliação de resultados e ocupar-se-ia das grandes obras tendentes a redução e combate a pobreza que estava no espirito da Estratégia de Combate a Pobreza (2004) que o executivo abandonou, sem nenhuma análise critica dos seus resultados e bondade.


Bem, voltando a sua questão, a descentralização política é um dos processos que maior potencial de mudança encerra, pois representa, pela sua própria natureza, uma oposição à hegemonia (política, económica e social) do Estado centralizado e concorre para a desconstrução do corporativismo, também porque permitir novas “fileiras” de promoção política independentes do controlismo central, quer do regime, quer de outros poderes, partidários. Por outro lado, representa uma forma de promoção e de qualidade do político com uma melhor gestão, nomeadamente dos serviços sociais da educação, saúde, saneamento e habitação que são fundamentais para o desenvolvimento do país. Permite uma maior mobilização do corpo social e uma partilha de um pensamento estratégico nacional, independentemente das diferenças políticas e da alternância no poder. Permite igualmente uma melhor distribuição da riqueza e, até de oportunidades de criação da riqueza.


 Em suma, a implantação das autarquias locais, nos termos da Constituição 2010, tenderia a desactivar conflitos, a assegurar uma melhor representação das populações, uma maior proximidade dos governantes dos governados e, uma consequente responsabilização daqueles diante destes, sendo, por isso, uma boa escola para a democracia e um factor importante do desenvolvimento nacional.
 


[1] Este dado é do Relatório de Desenvolvimento Humano 2010, enquanto que IBEP 2010 aponta para 193,5 mortes, em mil nados vivos, enquanto o Unicef 2010-11, para 2009, indica 161 mortes.
[2] In Relatório de Desenvolvimento Humano 2010.