Luanda - Manuela Fonte, docente da Faculdade de Arquitectura de Lisboa, com doutoramento em Planeamento Urbanístico sobre urbanismo e arquitectura em território angolano no século XX, mais concretamente entre 1920 e 1974, pela Faculdade de Arquitectura da Universidade Técnica de Lisboa, onde lecciona desde 1990. É precisamente neste domínio que se tem orientado em termos de investigação. Nesta entrevista falámos dos modelos de ocupação do território angolano, dos vários planos que foram elaborados para Angola, da destruição do património, dentre outros temas que julgamos de assomo interesse, pelo que chamamos a atenção dos leitores ao que se segue:  


* Cláudio Fortuna                                                            
Figuras e Negócios

Figuras e Negócios - Qual foi o propósito  desta sua participação no Congresso da Arquitectura Africana, e qual à temática da sua comunicação?
Manuela Fonte (M.F) - Fui convidada pela organização do congresso para estar aqui presente; basicamente, o meu contributo é tão só trazer aquilo que foi um trabalho de pesquisa que fiz no processo de doutoramento. Porquê o território angolano como área de pesquisa? É simples: por ter uma forte relação afectiva com este território, onde vivi a minha infância e que vim olhar com outros olhos, e porque ser um campo de estudo vastíssimo. Este olhar recai sobre uma análise e uma pesquisa daquilo que foram as práticas do urbanismo durante o século XX, quais as políticas que estavam subjacentes a estas práticas, bem como a relação entre o edificado, quer fossem edifícios de habitação ou edifícios de equipamento.


Foram lançados em Portugal dois volumes de uma obra de pesquisa sobre arquitectura dos séculos XIX e XX, teve acesso a esta obra?
Não sei se se está referir a um trabalho de pesquisa que foi feito na Fundação Calouste Gulbenkian, com coordenação do Professor José Mattoso, mas que não é sobre os últimos cinquenta anos, é muito mais, é sobre os quinhentos anos da presença Portuguesa no mundo. É uma base que reflecte a recolha de varisos investigadores ligadas às matérias de Arquitectura e Urbanismo, em três grandes volumes. Tive oportunidade de participar  com o pouco que conheço da realidade angolana. Há também um livro que foi publicado em Portugal, em Dezembro passado, sobre arquitectura e urbanismo em Angola no século XX, no qual também participei, juntamente com os Arquitectos José Manuel Fernandes e Maria de Lurdes Janeiro. 
Não sei se era a este livro que se referia, que contou com a minha participação exactamente com a matéria de estudo que tenho vindo a desenvolver. Há outro livro, que os dois autores fizeram, sobre Angola no século XIX, e este Angola no século XX.


Enquanto investigadora, em seu entender, qual tem sido o verdadeiro ponto fraco da arquitectura angolana hoje?
Bem... Sobre a actualidade não serei eu, seguramente, a pessoa mais indicada para fazer esta leitura. Posso apenas falar como observadora passiva, não activa, porque não intervenho no território; tenho vindo cá, mas não lido com as dificuldades do dia-à-dia. Contudo, julgo que, especialmente Luanda, está a sofrer aquilo que as grandes cidades sofrem, que é um boom habitacional e um crescimento acelerado. Quando digo sofrer, é no sentido em que as pressões do crescimento são constantes e permanentes, o que traz consigo aspectos positivos e negativos. Não gostaria de pronunciar-me muito sobrea a matéria da actualidade porque, na verdade, não a conheço tão bem quanto gostaria.


Quanto à ocupação do território, falava na sua comunicação em três formas de ocupação. Quais são, professora?
Da interpretação e leitura do território permitiu identificar três categorias distintas de aglomerados, tendo em conta a sua localização, a sua génese e a sedimentação das suas características formais.
Assim, os aglomerados/cidades de formação e localização no litoral, consequência do primeiro momento de fixação urbana em território angolano ligada aos impulsos que a colonização foi tendo até ao final do século XIX,  designamos como núcleos urbanos litorâneos de raiz espontânea. Tiveram o barco como meio de chegada que, através dos rios, alcançaram o interior, sendo por isso a porta de entrada para o sertão. O seu crescimento fez-se através da adição de planos de expansão.Os aglomerados cujo crescimento urbano decorreu da implementação da estrutura ferroviária, suporte de desenvolvimento económico e que se localizaram ao longo do percurso das linhas de caminho de ferro, cujo crescimento reticulado foi estruturado a partir da linha de caminho de ferro e da Estação, fundamentalmente para um dos lados da linha, designamos como núcleos urbanos sob influência da rede ferroviária.Os aglomerados no interior do território, de origem espontânea e de reduzida dimensão, cuja génese esteve ligada à acção comercial entre europeus e africanos, seguiram a ordem da estrutura rodoviária onde a estrada, que antes era simplesmente picada, foi entendida como rua ou avenida quando um novo plano assumia as preexistências e resolvia os vazios com uma nova estrutura, designamos como núcleos urbanos sob influência da rede rodoviária.


Falando dos planos, surgiram vários urbanistas que tentaram dar o seu cunho, numa nova  Angola, numa Angola moderna que se pretendia, quais são, em seu entender, os momentos mais marcantes da feitura desses planos?
Sem duvidas que os anos quarenta foram extremamente importantes, não querendo com isto dizer  que anteriormente a este período não tivesse havido momentos relevantes;  o caso mais relevante, foi a criação da cidade do Huambo, que é grande cidade do século XX. Nasce em 1912, exactamente na primeira governação de Norton de Matos, mas é a partir dos anos 20, na sua segunda governação que a cidade começa a tomar forma.
Contudo, é nos anos quarenta, com à sistematização dos planos de urbanização, que começara em Portugal nos anos trinta (1934), dez anos antes, que se criaram instrumentos de planeamento e gestão para  todos os aglomerados urbanos, sendo a figura o Plano de Urbanização.
Com o movimento moderno houve, de facto, uma actividade muito intensa, quer seja na figura de Planos Directores ou Planos de Urbanização, ou ainda Planos Parciais; é ainda a figura dos Planos para Zonas de Ocupação Imediata - PZOI que, tal como o nome indica, reflectia uma necessidade de se dotar de urbanidade pequenos núcleos urbanos, elaborados com um carácter muito expedito – deveria saber-se o que era necessário para cada aglomerado de que resultava um plano com grande pragmatismo – dotados de uma grande objectividade e determinação, usando o recurso a um léxico urbanístico bastante reduzido, mas o bastante para cumprir os objectivos. Julgo que estas três fases de produção urbana foram, sem dúvidas, momentos marcantes na história urbana de Angola.


Os PZOI foram planos que sustentaram os bairros indígenas professora?
Nos PZOI também estavam previstos bairros indígenas, mas já de uma forma mais aglutinada no  tecido urbano, não havia separação, enquanto que nos planos de urbanização havia. Repare que  estamos a falar em épocas distintas do pensamento urbanístico e das politicas vigentes. A partir do início dos anos 60 e até 70, a tentativa era de juntar os povos, quando, anteriormente,  era de separar estes mesmo povos. Os planos e os seus objectivos reflectem também estas políticas, de uma forma muito clara.


Quando se fala em planeamento, no que toca ao pormenor, é mais fácil fazer-se “de cima para baixo  ou de baixo para cima” ?  
Esta visão cadenciada, dos planos de grande escala para os planos de pormenor, nem sempre funciona como gostaríamos. Esta visão em Zoom, que é, ao fim e ao cabo, “de cima para baixo” (..risos!) digamos mas, muitas vezes, temos que inverter o processo porque as circunstâncias  assim o promovem e obriga a outras leituras, que é o “de baixo para cima”, que é quase como começar a partir do edifício, que promove depois a elaboração de um plano, seja ele de pormenor num primeiro momento, e que depois numa situação mais estruturada, de grande escala, como sejam os planos orientadores,  reguladores, directores, os estratégicos e por ai em diante.


Hoje ainda temos marcas simbólicas da arquitectura angolana ou portuguesa?
Acho que existem bons exemplos de arquitectura em Angola. Houve e há muitos autores que afirmam que se consegue identificar em Angola edificado com características muito semelhantes ao que se produzia em Portugal. Contudo, eu defendo que, embora os modelos e as orientações, tivessem a origem em Portugal, houve uma apropriação ao clima, à natureza, às pessoas e a pequenas particularidades que se vão encontrando, que me atrevo a dizer que é uma arquitectura tropical de expressão portuguesa, ou arquitectura angolana de expressão portuguesa. Que tem uma expressão portuguesa não podemos negar, não podemos dizer que não, como há no Brasil, como há em Macau, como há no mundo, agora que houve uma apropriação a este território que é único e que é diferente dos outros lados, parece-me que sim, e há, sem dúvida, bons exemplos do passado, de um passado mais longínquo e de um passado mais recente.


Na sua comunicação fez referência que numa determinada altura os planos eram gizados a partir de Portugal e depois houve um momento em que começaram a fazer-se cá. Em seu entender porque é  que houve esta evolução?
Esta evolução foi uma coisa muito simples. Repare, as comunicações não eram fáceis como são hoje, que temos a INTERNET, e em segundos enviamos informação de um lado outro do mundo. Naquela época não. A partir dos sítios que necessitavam de planos ou projectos de edificado, era enviado para Lisboa a solicitação, ao Gabinete de Urbanização Colonial (GUC), que por sua vez mandava fazer o levantamento topográfico, que era concretizado em cada sítio e era depois devolvido ao GUC, era elaborado lá por pessoas que nunca tinham cá estado. Portanto, era sempre  um exercício de estirador por vezes muito pouco agarrado à natureza dos sítios. Um exemplo disso é a situação caricata de quando se fez o plano do Lobito, em 1952;  quando o plano chegou, pouco ou nada tinha a ver com aquele terreno. Portanto, a natureza intrínseca da cidade não permitia que aquele plano fosse implementado, e teve que ser feito um novo plano. É óbvio que a centralização o próprio governo, exigia que fosse tudo a partir de Portugal ou Lisboa pelo que, pela assunção das necessidades passou, natural e gradualmente, a estabelecer-se em Angola, onde foi criada uma delegação do GUC e, mais tarde, a criação dos Serviços de Obras Públicas de Angola.


Ainda sobre os planos houve, seguramente, outros planos noutras províncias; mas chamou-me a atenção, na sua comunicação, uma ausência, salvo melhor argumento de razão, o facto do  Município de Menongue não ter tido um plano actualizado. Quer comentar, professora?
Repare, a amostra que trago é realmente incompleta. A minha pesquisa foi fundamentalmente feita em Lisboa e aqui em Luanda.  Os planos que consegui, que foram aproximadamente setenta, não são seguramente a totalidade dos planos que foram feitos para o território angolano, portanto, isto é sempre um trabalho inacabado. O que torna a pesquisa interessante é o facto de outras pessoas agarrem neste trabalho e lhe possam dar continuidade. Este é um ponto de partida. Foi este que já encetei. Agora, urge a necessidade de se conhecer e de se saber, concretamente ,qual foi a produção  urbana e arquitectónica que existiu ao longo dos séculos,  nomeadamente no século XX, que foi riquíssimo em termos de obras.
Durante a pesquisa encontrei planos que não têm data, outros que não têm autor, e ainda alguns ainda sem data e tão pouco autor; uns que deduzo a data através de leituras de outras fontes e cruzamento de dados, mas são deduções, não são factos, e por isso, falíveis.


Alguns autores dizem que dos planos gizados cá, o plano de De Groer, era o que mais privilegiava as zonas verdes, o que tem a dizer sobre esta afirmação?   
O plano de De Gröer, que também era de Moreira da Silva, para Luanda, de 1942, continha de facto muitas zonas verdes, porque o próprio modelo urbano da cidade Satélite previa que na envolvente do núcleo central houvesse uma grande mancha verde com produção agrícola, e depois desta surgiam as cinco comunidades satélites. Contudo, o plano também não chegou a ser implementado.


Gostava de a provocar do seguinte modo: em seu entender, qual seria a panaceia milagrosa para superar a crise habitacional em Angola?
(Risos)...Se tivesse uma cura milagrosa, confesso que já a teria aplicado em Portugal, mas não tenho... (riso). Não há, de facto, receitas. É muito difícil e cada caso é um caso; terá que ser feito um levantamento exaustivo das condições desta grande mancha de habitações informais dentro da cidade de Luanda. Existem porque houve necessidade que elas surgissem por circunstâncias várias, nomeadamente a questão da guerra, obrigando que as pessoas viessem para cidade, trazendo dos seus sítios de origem muitos modelos de habitação e organização em sociedade como tinham nas suas aldeias de origem. Há uma apropriação deste território,  que se faz de acordo com a origem de   cada pessoa ou família que se instalou aqui. Há que fazer esta leitura e, acima de tudo, criar canais de habitabilidade e urbanidade, é preciso criar ruas praças e avenidas,  é preciso criar acima de tudo infraestruturas, saneamento básico, água, electricidade, e fazer com que seja possível, através da realidade existente, serem criadas as condições de habitabilidade para todos, cerzindo estes tecidos que são pouco coesos. O direito à habitação está sagrado nas constituições, o que faz parecer ser um processo simples, mas todos nós sabemos que não é. Agora, saber qual é a receita? Hum, isto é que vai ser mais difícil ..risos.


Indo para a questão do património, como é que encara a destruição do património na baixa de Luanda professora?
E uma forma generalista, não consigo entender o porquê da destruiçã do património. Seja ele qual for, é um testemunho de um passado que se foi consolidando e que deu o presente. O futuro será sempre o somatório do presente e do passado e, se nós negarmos o passado, seja ele qual for, estamos a negar quase a nossa própria existência, porque destruir de forma  gratuita, parece-me sempre negativo. Os edifícios têm capacidade de reabilitação, capacidade de reorganização, de reocupação, de mudar as sua função, poderem ser adaptados aos novos usos. Destruí-los por destruir, como aconteceu no caso do mercado do Kinaxixi, para não falar de outros exemplos, acho que é violentar um percurso que a cidade teve, quando poderia seguramente ter sido recuperado. Repare, quando dizia na minha comunicação que o Banco de Angola e o Mercado do Kinaxixi, foram construídos no mesmo ano, por autores diferente e lógicas de ocupação diferentes, com lógicas de composição completamente distintas, contudo um está quase classificado e o outro foi demolido, quais são os critérios subjacentes? era um sim outro não? Julgo que o que será importante é definirem-se  os critérios, em primeiro lugar, para que não se cometam algumas injustiças, como julgo ter sido este, o caso.


Diz-se que onde foi edificado o BPC, havia um edifico interessante que foi demolido nos anos 60, o que tem a dizer sobre isto?
Sim, aquela torre do Januário Godinho; a cidade tem que se renovar, não digo que tenhamos que preservar tudo, por isso é que digo que é preciso definir os critérios primeiro, porque se não se definirem critérios é sempre um pouco aleatório e gratuito e podemos errar mais. Definindo os  critérios ajudar-nos- á,  seguramente, a ser mais justos com aquilo que é o legado histórico.


Alguns autores dizem, se calhar de forma nostálgica, que o Vasco Vieira  da Costa é o pai da arquitectura moderna angolana, qual é a sua leitura?
Não, acho que arquitectura moderna angolana tem vários pais e várias mães...risos...Vasco Vieira da Costa foi, sem dúvidas, um obreiro de Angola, mas há o Castro Rodrigues, o Simões de Carvalho,  o Francisco Silva Dias, o Januário Godinho, a Antonieta Jacinto, o Fernando Batalha...entre muitos mais. Repare que, destes arquitectos que acabei de referir, e como disse há muitos mais, à excepção do Januário Godinho que não viveu cá, todos os outros, desenvolveram cá a sua actividade profissional; tendo alguns nascido em angola. Castro Rodrigues, por exemplo, viveu no Lobito até ao final dos anos 80, tendo partido por razões de saúde. Portanto, há muitos pais! Acho que arquitectura angolana tem uma mão cheia de pais e mães, e isso é muito bom.
  

Dos planos consultados por si, qual foi o que mais a encantou professora?
Risos....Não posso dizer que tenha um! Esta é uma pergunta feia...(risos), mas tenho um carinho muito grande - falo destas coisas com imensa paixão, porque mexer nestas matérias é  mexer com coisas que fazem parte do meu e do nosso passado - gosto muito do plano do Luau mas, como digo que gosto, também podia gostar de tantos outros mais. Há uma relação afectiva, se calhar, com autor do próprio plano, o arq. Francisco da Silva Dias - talvez por me sido muito explicado; mas também o plano de Luanda, do arq. Simões de Carvalho, aqui presente, também me é muito querido, assim como o plano do Lobito, do arq Castro Rodrigues. Serão mais...Enfim, tenho assim uns quantos amores perdidos, por aqui.... (risos)